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Os Construtores da Guitarra Portuguesa

 

A história do fabrico da guitarra está ainda no seu início, com lacunas importantes no que diz respeito aos construtores anteriores ao século XIX, pela falta de documentação específica que registe a actividade dos vários nomes conhecidos de violeiros e pela escassez de instrumentos portugueses de períodos anteriores à primeira metade do século XVIII. No seu estudo pioneiro sobre o fabrico de instrumentos musicais, intitulado “Indústria Instrumental Portuguesa” (Lisboa 1914), faz Michel’Angelo Lambertini uma listagem de nomes com referências a alguns dos instrumentos que construíam, não porque não tivessem fabricado outros nenhuns, mas porque apenas encontrara referência histórica àqueles. Essa pequena obra (baseada em informações recolhidas pelo Dr. Sousa Viterbo em fontes primárias) é ainda hoje uma referência fundamental para quem queira estudar a Arte da Violaria em Portugal, ofício com tradição certamente multisecular e cujos registos são infelizmente pouco numerosos e imprecisos nas informações que contêm. Por outro lado, o facto de não haver referência à Cítara no Regimento dos Ofícios Mecânicos da Cidade de Lisboa (1572) ou em qualquer dos outros posteriores de outras cidades do país, não prova coisa nenhuma, uma vez que estes documentos não inventariam a produção dos oficiais mecânicos, mas tão só estabelecem as regras para a prática genérica do seu ofício, tomando como exemplo, no caso dos violeiros, as violas de mão e de arco, ou estabelecendo uma especialização de actividade no caso dos carpinteiros de órgãos e cravos, nos fabricantes de cordas, nos adufeiros e nos atabaqueiros (construtores de tambores).

Fica de fora a restante produção da época que incluía certamente instrumentos como os saltérios, os arrabis, as bandurras, as harpas, os alaúdes e as cítaras, cujas referências podemos encontrar noutras fontes históricas, iconográficas e literárias dos séculos XV e XVI. O mais antigo nome de “Guitarreiro” constante dos arquivos portugueses parece ser o de Martim Vasques Coelho, activo entre 1424/1462 o qual poderá ter sido igualmente (como era costume na época) construtor de violas (de mão e de arco), de cítaras, de harpas e de alaúdes. O nome mais usual para designar o ofício era o de “Violeiro” (que corresponde ao nome francês de 21 “Luthier”), podendo também aparecer a forma “Guitarreiro” para os séculos XV e XVI, pela simples razão de que a palavra Guitarra, designava nessa época uma das variantes da Viola de mão. No século XVI (a partir de 1521, durante os reinados de D.João III e D.Sebastião), aparecem os nomes de Álvaro Fernandes, Diogo Dias (nomeado por alvará real em 1551) e Belchior Dias, todos eles de Lisboa. Deste último conhecem-se três exemplares belíssimos de violas de mão de cinco e seis ordens, estando um deles no Royal College of Music de Londres (datado de 1581) e os restantes no Shrine to the Music Museum, South Dakota e nas reservas do Musée de la Musique, em Paris.

As informações referentes a violeiros do século XVIII, são hoje bastante mais completas do que no tempo de Lambertini e nalguns casos foi possível encontrar provas da actividade destes nomes acima expostos, pelo exame de “oficial mecânico” a que foram sujeitos e, claro está, pela observação directa das peças que produziram e que chegaram até nós. Devemos a lista de nomes referentes à cidade de Braga, ao trabalho excelente do Doutor Aurélio de Oliveira, que investigou também com minúcia a história do violeiro Domingos José de Araújo, natural desta cidade. No século XIX é claro o desenvolvimento de núcleos com intensa actividade em várias cidades cobrindo as principais regiões do país, dando origem a verdadeiras “escolas” de violaria, geralmente conhecidas como a “escola” do Porto, a de Coimbra e a de Lisboa. Construtores da Guitarra Portuguesa Este longo caminho fez-se de pequenos e grandes contributos, da inteligência e da arte de fabricantes e músicos que, de geração em geração, foram transmitindo o seu saber de forma directa aos seus sucessores até chegarem à actual situação, que poderemos designar por indústria artesanal de pequena dimensão, resultante de esforços isolados e pouca comunicação entre os que praticam a construção e os que utilizam posteriormente os instrumentos, bem como da limitadíssima área de mercado disponível para a Guitarra Portuguesa no nosso país. A escassez de informações concretas relativas aos construtores anteriores ao século XVIII, bem como aos instrumentos que construíram e que não chegaram até aos nossos dias, sugere-nos uma análise cuidada sobre o trabalho dos restantes construtores, cuja produção podemos observar ainda hoje.

Comecemos então por Joaquim Pedro dos Reis, de Lisboa cujo único exemplar de Guitarra feito em 1764 (supostamente pertencente à Severa), apresenta características de uma arte com algum cuidado nos acabamentos (friso e embutidos de pau-santo), apesar de se tratar de instrumento de características populares com o corpo, o braço e o cravelhal feitos em casquinha (Pinus silvestris), por isso mesmo de uma grande leveza, de boa ressonância e volume de som. O instrumento com seis ordens em doze cordas, apresenta ainda o ponto em pau-santo, com 17 trastes de alpaca e divisão em temperamento igual, característica bastante avançada para a época, quando comparada com a realidade encontrada em violas de arame do mesmo período. Da mesma época, do mesmo tipo e dimensões surge a Guitarra de João Correa d’Almeida, construída em 1776, com o fundo e ilhargas em Acer (Acer pseudoplatanus) e o tampo em espruce (Picea abies) de boa qualidade. Este exemplar apresenta características já presentes nas cítaras dos séculos XVI/XVII com apenas duas travessas sob o tampo harmónico, nos dois lados da boca do instrumento. O braço e o cravelhal são feitos em Amieiro numa só peça, sendo ligados ao corpo por um malhete em rabo de andorinha, característico ainda hoje da técnica de construção de Lisboa. Uns anos mais tarde encontramos nos instrumentos de, Estêvão Xavier dos Reis, João José de Sousa, e 22 Henrique Rufino Ferro os sinais de que o tipo de características mencionadas acima já se tinha vulgarizado entre os construtores de Lisboa, dando assim lugar ao que podemos chamar a fase de emancipação do instrumento.

Todavia, ao mesmo tempo que se desenvolvia um tipo popular e autónomo de Cítara em Lisboa, alguns destes construtores copiavam aspectos exteriores dos modelos importados de Inglaterra, satisfazendo uma procura mais exigente em termos de materiais e acabamentos e, provavelmente destinada à execução do reportório musical escrito para a Guitarra “Inglesa”. É este o caso do instrumento que se encontra hoje em Londres, no Victória and Albert Museum, o qual foi construído em Lisboa, na Praça da Alegria, por Jacó Vieyra da Silva por volta de 1790. O corpo é de casquinha (Pinus sylvestris), o braço é de amieiro (Alnus glutinosa) e apresenta uma bela rosácea em rede metálica com uma estrela de 9 pontas em madrepérola embutida no centro. O ponto apresenta-se coberto por escama de tartaruga sobre fundo vermelho de cochonilha. Esta peça de nítida influência inglesa, apresenta algumas características que encontramos na violaria portuguesa da época, como seja o gosto exuberante pelos embutidos de madre-pérola e ainda o cuidado nos acabamentos, mas apesar disso com um verniz pobre feito à base de goma-laca e sangue de drago, de pouca transparência.

É neste período que encontramos a primeira tentativa de fabrico industrial da Guitarra, na cidade de Braga, por iniciativa de Domingos José d’Araújo sediado na Rua dos Chãos de Cima, nesta cidade. Braga era no final do século XVIII um importante centro cultural, com uma verdadeira “Corte Eclesiástica”, cultivando a música em diversos géneros e promovendo as artes e ofícios manuais, em especial aqueles que de algum modo estivessem relacionadas com a Igreja, como é o caso dos trabalhos de madeira, (carpinteiros, entalhadores, marceneiros, santeiros, etc.) Podemos também verificar ainda hoje o gosto especial dos minhotos pelas festas de todo o tipo, nas quais predominava o uso dos instrumentos de corda , os quais, apesar de em principio serem excluídos de funções cerimoniais de âmbito litúrgico, gradualmente participam na laicização dos festejos, associando-se aos momentos lúdicos de determinados grupos da sociedade bracarense.

A tradição da violaria bracarense remonta pelo menos ao século XVI e está claramente associada às festividades religiosas cíclicas e em particular às necessidades específicas da Igreja, como o fabrico e construção de órgãos, a decoração destes bem como a preparação dos restantes instrumentos musicais intervenientes em momentos especiais (como a procissão do Corpus Christi, o ciclo do Natal, etc.). Como parte desta tradição, é possível que em Braga já houvesse construtores de cítaras/guitarras nos séculos XVI e XVII, mas é apenas no século XVIII que encontramos os registos dos ofícios mecânicos, que dão prova cabal da sua existência. Em 13 de Março de 1804, surge o pedido de Domingos José d’Araújo para o registo na concessão de Privilégios Reais, obtidos para a fábrica de “Guitarras, Rabecoins, Rabecas e Violetas”, segundo a provisão do príncipe regente D. João (futuro rei D. João VI). Das muitas guitarras produzidas nessa fábrica, conhecemos sete exemplares, utilizando todos a mesma forma, variando apenas em aspectos relacionados com a decoração e que claramente podemos associar a modelos importados da Guitarra inglesa, então ainda fortemente em voga junto das camadas altas da sociedade nortenha. Um olhar atento sobre os documentos apresentados por Araújo para a concessão dos privilégios acima mencionadas, revela-nos que a fábrica só produzia instrumentos para uso musical culto (principalmente de arco) e cuja preocupação era a de garantir a qualidade, quando comparada com os de importação, como se pode verificar pela frase “...Instrumentos que fabricava com a maior perfeição Excedendo os Estrangeiros não Só nos bons vernizes, como na Escolha das Madeiras...” É, portanto, um caso bastante isolado no contexto nacional dos construtores de guitarras e porventura um exemplo português tentando imitar o sucesso das produções industriais inglesas de John Preston, construtor ao qual é atribuída a invenção do sistema mecânico de afinação com chapa metálica quadrada de 10 tarrachas e parafuso-sem-fim, accionadas por uma chave de relógio de bolso. Em Lisboa fabricavam-se preferencialmente um modelo com cravelhal em espátula e doze cravelhas dorsais e outro com chapa de doze parafusos-sem-fim e chave de relojoeiro. Ao primeiro dava-se o nome de Cítara (até ao final do século XIX) e ao segundo o de Guitarra, sendo muitas vezes a mesma forma da caixa a servir os dois modelos embora o número de cordas e a afinação fossem diferentes para cada modelo, bem como as técnicas de execução da mão direita (a cítara tocava-se preferencialmente com uma palheta ou plectrum e a guitarra com as unhas e polpa dos dedos).

Muitos dos exemplares de guitarras que sobreviveram com o sistema de chave e chapa metálica, foram originalmente construídos com cravelhal espatular e cravelhas de madeira, tendo sido objecto de transformação posterior, com o corte do braço e adição do novo cravelhal e, geralmente cobertos com tinta negra (tipo “verniz de piano”) para disfarçar a junta praticada no braço. João José de Sousa construiu dezenas de instrumentos destes dois modelos em Lisboa, na sua oficina da Calçada do Caldas nº 86, sendo eventualmente o primeiro a utilizar as chapas de chave em substituição do cravelhal de pá nas guitarras que construiu. António José de Sousa “O Mudo” (filho do anterior), João Gomes e mais tarde Manuel Pereira foram destacados fabricantes de cítaras de cravelhal de pá e cravelhas de madeira, tendo também construído guitarras com sistema de chave e com as primeiras chapas de leque criadas cerca de 1870, utilizando boas madeiras e embutidos de madre-pérola e dividindo cuidadosamente os trastes sobre o ponto.

Manuel Pereira (1840-1889) foi o construtor mais afamado do seu tempo, tendo construído guitarras que se encontram nos museus de Bruxelas, Milão, Roma e Lisboa . O sucessor de Manuel Pereira na Rua das Portas de Santo Antão nº 189/191, foi Manuel C. Teixeira (activo a partir de 1880) autor da belíssima Guitarra, hoje em exibição na Casa-Museu Amália Rodrigues, em Lisboa e que apresenta embutidos de Pau-Santo sobre base de Ácer, representando figuras de sátiros e musas tocando instrumentos, figuração fitomórfica estilizada e cujo cravelhal em leque, em latão niquelado e gravado é encimado por uma cabeça de Leão entalhada e pintada de cor dourada. Esta peça, das mais decoradas que conheço, destinou-se certamente a satisfazer uma encomenda especial ou talvez a figurar na Exposição Universal de Paris em 1900, é construída com os melhores materiais (fundo e ilhargas de pau-santo, recoberto a folha de ácer e tampo harmónico de spruce, recoberto a folha de ácer).

Os irmãos Augusto Vieira e António Victor Vieira, talvez originários da ilha da Madeira, mas ambos instalados em Lisboa a partir de 1888 (o segundo foi o herdeiro da oficina anteriormente referida), foram dos mais notáveis e férteis construtores, sendo autores de numerosas guitarras de boa qualidade premiadas nas exposições Universais de Paris (1900) e St,Louis, USA (1904) e na Industrial de S. Miguel (Açores) em 1901. Interessados pela pesquisa de novas formas, alteração de dimensões e até construção de modelos diferentes (veja-se o guitarrão de 1932, com o corpo em forma de cítara clássica, em exibição no Museu Nacional de Etnologia), chegaram a ter várias oficinas em produção simultânea, sendo os únicos a numerar, datar e inventariar a sua produção. Outro herdeiro desta tradição de qualidade foi João Rodrigues da Rosa, o qual funcionou na mesma oficina no princípio do século XX e depois no Largo de S. Martinho e punha nas suas etiquetas impressas: “João Rosa, único discípulo de Manuel Pereira”, reclamando para ele próprio o mesmo estatuto que 24 M.C. Teixeira e a empresa Rosa & Caldeira, os quais herdaram efectivamente as oficinas do grande mestre lisboeta.

Parte do espólio de formas, ferramentas, materiais diversos e maquinaria específica para a construção de leques, cravelhas e atadilhos passou para a oficina de Álvaro da Silveira e mais tarde para a de Manuel Cardoso, sendo actualmente distribuído pelas oficinas Óscar Cardoso e de Fernando Silva. Na mesma época teve actividade florescente no Porto o construtor António Duarte, do qual possuímos três exemplares de construção esmerada, embora com modelos de características diferentes. António Duarte teve a primeira oficina na Rua da Bainharia, fundada em 1870 e mais tarde mudou-se para a Rua Mouzinho da Silveira nº 165/167 (cuja oficina ainda existe, actualmente gerida por António Couto). Construía 3 modelos com comprimentos de corda vibrante de 470 mm, 440 mm e 420 mm e utilizava também medidas diferentes para os corpos (35 cm a 27 cm) e ilhargas que podiam variar entre os 8,5 cm e os 7 cm (máximo) e os 5,5 cm e 4 cm (mínimo). António Duarte é também conhecido como bom construtor de violinos, rabecas “chuleiras”, violas “braguesas” e bandolins, sendo justamente considerado o criador do “modelo” de Guitarra do Porto, o qual se distinguia do de Lisboa pela sua forma mais arcaica (próxima do perfil das cítaras italianas) e pela cabeça geralmente ornamentada com motivos fitomórficos. Construiu entre muitas outras, a guitarra da célebre cantora e actriz Adelina Fernandes, onde se pode notar o esmerado fabrico em pau-santo, cercadura da boca com embutidos de madre-pérola e cravelhal em chapa de leque, encimado por escultura representando uma cabeça de bacante, com o cabelo envolto em cachos de uva.

Joaquim da Cunha Mello, também do Porto, foi contemporâneo do anterior, tendo sido sobretudo fornecedor dos estudantes de Coimbra, para os quais realizava guitarras em materiais baratos, fabricando segundo os modelos e medidas de António Duarte. Criou uma firma, cuja gerência passou a seu filho Luís da Cunha Mello tendo este abandonado a actividade em 1910.

Ainda inserido na chamada “escola do Porto” encontramos Manuel Pereira dos Santos, com oficina em Alfena e mais tarde em Matosinhos, o qual foi premiado com medalha de prata na Expo Universal de Paris em 1889. Este violeiro, não deve ser confundido com o seu homónimo de Lisboa pois além do mais, tem como características distintivas do seu trabalho, a aplicação de embutidos de madrepérola gravada e tingida, a escolha muito criteriosa de madeiras de pau-santo e spruce e acabamentos em verniz de muito boa qualidade. Conhecemos vários exemplares de guitarras, violas e bandolins deste autor e todos confirmam a mestria e imaginação com que inova particularmente o desenho das guitarras, com inclusão de rosáceas na boca e a chapa de leque dupla, sistema de cravelhas metálicas com parafuso sem fim integrado, além das cabeças entalhadas com motivos fitomórficos.

Dentro dos construtores do Porto do início do século XX salientamos José do Nascimento Lopes e António Pereira Cattão fabricantes de guitarras de boa qualidade, esmerado acabamento de verniz e decoração cuidada. José Paulo Ferreira (activo entre 1880-1905) foi um dos construtores de Lisboa que marcou pela qualidade do seu trabalho e cuidadosa escolha das madeiras, como se pode ver pela guitarra com cravelhal de pá que apresentamos, a qual não fica atrás dos trabalhos de Manuel Pereira. Salvador José dos Santos e António Maria da Costa Feio foram dois fabricantes de Lisboa do século XIX que se tornaram notados pela qualidade dos instrumentos que nos deixaram e pelas inovações introduzidas. Ao primeiro é atribuída a invenção de uma guitarra-harpa, construída em 1899, em raiz de freixo e embutidos de prata na rosácea com figuras de instrumentos (guitarra, violino e viola) em miniaturas 25 recortadas de grande perfeição e ao segundo são creditadas as invenções do Guitabando, Guidim e Bandolinete que combinam processos acústicos e mecânicos de outros instrumentos (bandolim, viola, bandola) com os da Guitarra Portuguesa.

João Pedro Grácio (1872-1962) foi o patriarca de uma grande família de guitarreiros (cinco dos seus doze filhos foram construtores) tendo fundado a sua oficina em Lisboa, na Rua da Boavista, em 1890 e criado a marca “A Lusitânia”, fábrica de guitarras, bandurras, bandolins, bandoletas, violas francesas, violões, cavaquinhos, etc. tendo alguns dos seus instrumentos sido premiados na Exposição Universal de Paris em 1900.

Com eclodir da Guerra de 1914-18, Grácio vê-se obrigado a regressar à sua terra natal (Coimbrão, perto de Leiria) continuando a produzir instrumentos para as tunas da região e para os estudantes de Coimbra. Os instrumentos produzidos por João Pedro Grácio, rivalizam em qualidade com os dos irmãos Vieira, de Lisboa e este facto bem como o desejo de conquistar uma clientela mais exigente de profissionais, leva-o mais tarde ao restabelecimento duma oficina na capital, a Guitarraria Leiriense do Largo de São Martinho (ao Limoeiro), fundada cerca de 1922. Esta velha oficina, fundada no princípio do século por João R. Rosa, atraía alguns guitarristas célebres da época que residiam nas imediações, como era o caso de Petrolino e Armandinho, bem como de outros que ali convergiam para um convívio interessado, mudar cordas ou fazer pequenos arranjos nas guitarras, como Artur Paredes, Francisco Menano, etc. Aqui foram iniciados na arte os filhos João Pedro, Joaquim, José Pedro, Manuel, Ulisses e Victor (que mais tarde abandonou a arte, estabelecendo-se como relojoeiro) e em convívio permanente com várias gerações de guitarristas se foi aperfeiçoando, experimentando e progredindo na construção do nosso actual instrumento.

Um aspecto único e original desta família, foi o facto de todos serem executantes, tendo mesmo formado sobre a direcção atenta de João Pedro, a “Troupe Musical Os Grácios”. Segundo Gilberto Grácio (neto de João Pedro), a excelente guitarra fabricada para Armandinho em 1925 e apresentada nesta exposição, terá sido realizada nesta oficina e resta como exemplo do notável trabalho aí então produzido.

Em Lisboa surge pela mesma época o guitarreiro Arthur de Albuquerque, autor da bela guitarra que apresentamos e que revela excelente escolha de madeiras (fundo e ilhargas de Ácer olho-de-perdiz, tampo em spruce e braço em tília), cuidadoso acabamento com trabalho muito apurado de embutidos em madeira (frisos) e em madre-pérola (boca). As guitarras deste autor revelam uma forma mais próxima do círculo que viria a ser a característica das actuais guitarras de Lisboa. Arthur de Albuquerque fundou a sua oficina em Lisboa em 1898, tendo como seu discípulo o guitarreiro madeirense Álvaro Marciano da Silveira, o qual foi seu empregado entre 1903 e 1907.

Álvaro da Silveira nasceu no Funchal a 3 de Julho de 1883, tendo vindo para Lisboa aos 20 anos. Na sua terra natal, terá começado a aprender a arte com o construtor de violinos Augusto M. da Costa, vindo mais tarde a especializar-se no fabrico da Guitarra com o construtor acima mencionado, chegando a ser encarregado da sua oficina na Rua da Boavista, antes de se estabelecer por conta própria no Conde Barão em 1907. Mais tarde transferiu-se para o Bairro-Alto, onde teve oficina na Travessa dos Inglesinhos, nº 35-2º, até se mudar, já na década de sessenta para a sua casa-oficina no Beco de São Lázaro nº20-2º, onde veio a falecer cerca de 1972. Silveira, conhecido no meio como Álvaro “ilhéu”, teve apoio do Instituto para a Alta Cultura nos anos trinta para realizar um estágio em Cremona numa escola de construtores de violino, instrumento que tornou a construir na década 50/60. Teve também encomendas de Alaúdes e outros instrumentos antigos por parte de um curioso grupo inglês de música antiga que trabalhava na BBC de Londres no final dos anos trinta.

As Guitarras de Álvaro da Silveira foram, e são ainda hoje, muito apreciadas pelos profissionais de Lisboa, tendo sido usadas por Armando Freire (Armandinho), Salgado do Carmo e Júlio Silva, no princípio do século e mais tarde por José Nunes, Fontes Rocha e Carlos Gonçalves que as preferiam entre todas as outras. Uma das marcas distintivas do fabrico de Silveira, é o cuidado posto na junção do braço com a caixa, fazendo terminar o braço por uma linha oblíqua em arco, em vez da tradicional oblíqua recta.

Outro contemporâneo do guitarreiro anterior e, curiosamente seu conterrâneo também, foi Francisco Januário da Silva o qual ficou conhecido como Chico “ilhéu”. Francisco da Silva foi empregado de Álvaro até cerca de 1920 tendo-se estabelecido nessa altura por conta própria em oficina na Rua do Diário de Notícias nº 60. Fez várias guitarras de duas bocas, segundo o modelo de Júlio Silva e foi autor da magnífica guitarra do escritor-guitarrista Barata Dias. Avelino Coutinho foi outro dos construtores de guitarras de Lisboa que se distinguiu no primeiro quartel do século, pela perfeição dos seus instrumentos, tendo a sua oficina nas Escadinhas da Costa do Castelo. 

Fabricou em 1915 a Guitarra do célebre concertista Carmo Dias, o qual tocava por música e na afinação “natural”, segundo a tradição novecentista da guitarra “inglesa”. Domingos Cerqueira da Silva (1901-1980) foi o melhor construtor de guitarras da cidade do Porto, tendo realizado instrumentos para José Nunes, Fontes Rocha, Álvaro Martins, etc. Herdeiro de uma tradição familiar que remonta ao seu avô Cerqueira, tinha oficina na Rua Costa Cabral 388, na mesma rua onde seu pai e seu avô tinham possuído outras casas de instrumentos, nomeadamente em sociedade com Artur Barbosa. Com apenas 16 anos, Domingos Cerqueira veio para Lisboa trabalhar para a casa de António Victor Vieira na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa e em 1919, empregou-se na casa Custódio Cardoso Pereira & Cia. Lda. vindo mais tarde em 1926 a trabalhar para a Casa Castanheira, do Porto, cidade onde se estabeleceu por conta própria em 1962, criando a célebre oficina atrás mencionada, que reunia em tertúlia muitos dos melhores instrumentistas portuenses.

João Pedro Grácio Júnior (1903-1967) foi sem dúvida, de entre os filhos de João Pedro Grácio, aquele que conquistou maior fama entre os construtores de guitarras de todos os tempos. Para tal fama, para além de trabalho de notável qualidade e perfeição, contribuiu também o facto de estar sempre aberto a sugestões dos seus clientes e amigos, entre os quais se contaram Artur Paredes, que de forma persistente e em diálogo constante com o mestre Grácio, aperfeiçoou a Guitarra de Coimbra. João Pedro foi igualmente executante de Guitarra e admirador de Petrolino e Armandinho com quem igualmente dialogou sobre as características do modelo de Lisboa, o qual foi desenvolvido principalmente nas suas oficinas. João Pedro Grácio Júnior, fundou a sua oficina nas Escadinhas da Ponte Nova, nº8, Agualva, Cacém e aí fabricou guitarras, bandolins e violas para os mais célebres executantes do nosso século, incluindo os nomes de Artur e Carlos Paredes, João Bagão, José Nunes, Jaime Santos, Raul Néry, Carvalhinho e Fontes Rocha (guitarras) e Santos Moreira, Júlio Gomes, Pedro Leal, Pais da Silva, José Inácio e Fernando Alvim (violas).

Joaquim Grácio (1912-1994), foi o outro dos filhos de João Pedro Grácio que se distinguiu no fabrico de guitarras, violas, bandolins, violinos e arcos de violino. Tendo uma atitude de experimentalismo constante e vontade de inovação nas técnicas de construção. 

Kim Grácio (como era conhecido no meio) cedo se distinguiu dos irmãos, separando-se da oficina paterna na década de 50, para, em conjunto com José Duarte Costa fundar uma oficina para dar apoio a uma escola de Guitarra Clássica (viola) que este havia criado na Av. João XXI. Kim Grácio fez experiências várias, em colaboração com os guitarristas Artur Paredes e João Bagão (para o qual construiu uma Guitarra em madeira de Plátano, com boca oval e fundo facetado, para além das travessas que eram talhadas em cunha de forma a reduzirem a superfície de colagem ao tampo harmónico) e com ambos tinha longas e profundas discussões sobre as possíveis melhorias a introduzir na construção das suas guitarras. Dotado de um espírito afirmativo e de um carácter emotivo, Kim viria a sofrer algum abandono por parte de clientes em favor dos seus irmãos, especialmente do João Pedro. Mais tarde foi para Chicago, E.U.A., trabalhando na oficina de um construtor de violinos e arcos, com quem aperfeiçoou as suas técnicas, regressando a Portugal no início da década de setenta para se estabelecer primeiro na Av.do Mar, Costa da Caparica e mais tarde na Sobreda da Caparica, dedicando-se sobretudo ao restauro de instrumentos de arco das orquestras e ocasionalmente construindo uma guitarra e uma viola para Octávio Sérgio e seu filho Sérgio de Azevedo. Manuel Cardoso (1933-1991) foi outro dos notáveis artífices da Guitarra deste século, tendo criado a sua oficina de Odivelas no início da década de setenta.

Cardoso trabalhou inicialmente no Minho (Cinfães) como carpinteiro e marceneiro vindo mais tarde (1960) para Lisboa, onde se empregou no Salão Musical Lisboa, na Rua dos Anjos, nº 37-C, fabricando então estojos para instrumentos de sopro. Em seguida foi trabalhar com Álvaro da Silveira, tendo com ele aprendido os “segredos” do fabrico de instrumentos de corda, entre os quais as guitarras. Nos últimos vinte anos da sua vida, Manuel Cardoso produziu centenas de guitarras, violas, banjos e bandolins de boa qualidade, tendo também sido exímio na execução de restauros, assistido pelo seu filho Óscar que continua a tradição familiar.

Gilberto Marques Grácio (1936) é o actual membro em evidência, da destacada família de construtores de guitarras com origem em Coimbrão (Leiria), tendo iniciado a sua actividade com apenas doze anos de idade. Herdeiro desta tradição familiar, Gilberto recebeu influência directa do seu pai, de quem foi assistente até ao seu falecimento em 1967, terminando algumas das suas guitarras que ficaram inacabadas. A partir dessa data e assistido por seu tio Manuel Pedro Grácio e Álvaro Ferreira, Gilberto Grácio manteve em funcionamento a oficina do Cacém onde mais e melhores guitarras se construíram. Grácio constrói também muitos bandolins e violas de fado (consideradas por muitos como sendo a sua grande especialidade) e por sugestão do guitarrista Fontes Rocha realiza em 1969 um primeiro modelo híbrido de Guitarra (forma e tiro de corda de Coimbra, mas com barras harmónicas, cabeça em voluta e ornamentos, do tipo de Lisboa) e mais tarde em 1972, por sugestão de Carlos Paredes constrói um “Guitarrão” (com o corpo de uma guitarra de Coimbra, mas com o comprimento vibrante de corda da viola). Ainda nesta década, decide reactivar a sua oficina de Coimbrão onde passa largas temporadas, fazendo todo o processo de preparação das madeiras, a dobragem das ilhargas, assemblagem nas formas e corte dos braços, realizando apenas os acabamentos na sua oficina de Agualva, onde atende os clientes e convive com os amigos, que acorrem em grande número, formando uma tertúlia permanente em torno das questões relacionadas com a Guitarra e o fado, do qual é grande apreciador.

Foi homenageado em sessão pública no Casino do Estoril e pela Academia da Guitarra Portuguesa e do Fado em 1998. Na mais nova geração, surgem em destaque os nomes de José Fernando Meireles Pinto, natural de Penafiel em 1959 e Óscar Manuel Barbedo Cardoso, nascido em Montão, Cinfães do Douro em 1960.

Fernando Meireles (como é conhecido no meio artístico) começou os seus estudos musicais no Conservatório de Música de Coimbra em 1983 e no ano seguinte, inicia a sua actividade como construtor autodidata de cavaquinhos, violas, bandolins e guitarras. Pouco tempo depois inicia a construção de sanfonas (instrumento de corda friccionada com roda, do qual foi pioneiro na construção em Portugal, nos tempos modernos), tendo obtido grande sucesso com a construção deste instrumento na Galiza, em França e em Portugal. A partir dos anos 90, constrói regularmente guitarras portuguesas para os estudantes da cidade onde habita (Coimbra), tendo a sua oficina instalada no edifício da Associação Académica de Coimbra. Em 1995-96 realizou um curso de Construção de Instrumentos Populares Portugueses, promovido pela Direcção Regional de Cultura do Centro, pela Universidade de Coimbra e subsidiado pelo Instituto do emprego e Formação Profissional de Coimbra.

Funda em 1990 o grupo Realejo, que utiliza instrumentos da sua autoria, como sanfonas, bandolins, concertinas, violas braguesas e cavaquinhos, com grande sucesso no panorama renovador da música tradicional portuguesa. Em 1995 foi agraciado com a Medalha de Mérito da Cidade de Coimbra, a qual lhe foi entregue em sessão solene no Salão Nobre da Câmara Municipal, nas comemorações do 25 de Abril.

Em 1998, construiu a Guitarra que possuímos (modelo de Coimbra) onde são visíveis algumas alterações de pormenor (desenho da caixa, dimensões da espessura do tampo harmónico, etc.) que apontam novas soluções para a construção deste instrumento, verificáveis através das características deste exemplar, dotado de grande volume sonoro, ressonância igual em todas as cordas e excelente qualidade tímbrica.

Óscar Cardoso continua a tradição de seu pai, Manuel Cardoso, com o qual se iniciou na arte da construção de guitarras aos 18 anos. Óscar frequentou o curso de Guitarra Clássica da Escola Victorino Matono entre os anos de 1980-86 tendo nesse ano recebido uma bolsa da Secretaria de Estado da Cultura para estudar as técnicas de construção na Scuola Internationale de Liuteria em Cremona, Itália, sob a direcção do mestre Scarpini. Regressado a Portugal em 1990, inicia a colaboração com seu pai e por morte deste em 1991, herda a oficina no Casal do Privilégio, em Odivelas. Recebeu a medalha de mérito do Município de Odivelas no ano 2000. Tem realizado interessantes modelos experimentais e híbridos (p.ex. Viola com corpo de Guitarra) e construído guitarras para Arménio de Melo, Carlos Gonçalves, João Alvarez, Ricardo Dias e Mário Pacheco, entre outros, sendo por todos eles considerado como um dos melhores construtores de guitarras portuguesas da actualidade.

 

© Pedro Caldeira Cabral 2007 “À Descoberta da Guitarra Portuguesa” - Texto do Catálogo da Exposição de 2002

Actualizado em (02/08/2007)

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